A Interação entre Contabilidade e Tributação na Contraprestação Contingente (earn-out) nas Aquisições de Empresas (M&A) sob o Regime de Lucro Real
No contexto das aquisições de participação societária por pessoas jurídicas sujeitas ao regime do lucro real, a contraprestação contingente, também conhecida como earn-out, surge como um instrumento contratual essencial. Esse tipo de cláusula vincula o pagamento de parte do preço da aquisição ao atingimento de metas ou condições futuras, o que gera incertezas quanto ao valor final a ser pago. A complexidade tributária e contábil dessa prática exige uma análise detalhada para a correta apuração dos tributos devidos, especialmente no que se refere ao Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
A legislação brasileira exige que a contraprestação contingente seja tratada com cuidado tanto no âmbito contábil quanto tributário, o que implica em reconhecer as diferenças entre o valor de aquisição de participação societária e os ajustes que podem ocorrer após a transação. A abordagem de Diego Aubin Miguita(2023) e confirmada por Silva e Przepiorka Vieira (2024) sobre o tema, esclarece como a interação entre normas contábeis e tributárias pode ser complexa, propondo uma análise que, embora focada nas diretrizes normativas, também leva em consideração o impacto dessas cláusulas na prática das operações de aquisição.
Essa abordagem reforça a natureza jurídica de preço condicionado do earn-out, enfatizando que o dispositivo contratual possui condição suspensiva, cuja eficácia tributária apenas se materializa após o implemento do evento futuro. Segundo os estudiosos, a condição prevista na cláusula “somente adquire eficácia quando implementada”, o que impede o reconhecimento fiscal antecipado do valor (SILVA; PRZEPIORKA VIEIRA, 2024, p. 231). Da mesma forma, Miguita (2023), informa que se trata de cláusula contratual que condiciona parte do preço da transação ao cumprimento de metas futuras, sendo o pagamento adicional incorporado ao custo de aquisição somente após a concretização dos eventos previstos.
- A Natureza Jurídica da Contraprestação Contingente
O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 487, permite que as partes estabeleçam o preço de um contrato com base em índices ou parâmetros suscetíveis de verificação objetiva, o que fundamenta o uso de cláusulas de preço determinável, como o earn-out, nas aquisições de participação societária. A contraprestação contingente, portanto, representa uma possível adição ou redução no preço, dependendo do cumprimento de metas ou eventos futuros.
Essa modalidade contratual pode gerar desafios para a interpretação do valor final da aquisição, pois o pagamento adicional está condicionado ao cumprimento de determinadas condições. Embora sua natureza seja futura e incerta, a contraprestação contingente integra a contraprestação acordada entre as partes e, em muitos casos, pode alterar o valor final do preço.
- O Tratamento Contábil da Contraprestação Contingente
De acordo com o Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), por meio do CPC 15 (R1), a contraprestação contingente deve ser reconhecida pelo seu valor justo na data da aquisição, como parte do valor da aquisição, para fins contábeis. Ou seja, no momento da transação, é necessário calcular o valor presente do pagamento contingente com base nas condições acordadas e nas probabilidades dos eventos que podem desencadear o pagamento adicional.
No entanto, embora o valor justo da contraprestação contingente seja reconhecido contabilmente, não se pode esquecer que isso não implica um efeito tributário imediato. A contabilidade lida com o valor presente da contraprestação, enquanto o impacto tributário se concretiza apenas quando o pagamento da contraprestação contingente se efetivar, ou seja, quando as condições acordadas forem atendidas.
Miguita observa que, no contexto tributário, embora o valor da contraprestação contingente seja reconhecido para fins contábeis no momento da aquisição, ele só impactará a base tributária quando o pagamento real ocorrer. A importância dessa diferenciação entre o tratamento contábil e o tributário é evidente: a contabilidade registra uma possível obrigação, mas é a implementação da condição que desencadeia a realidade fiscal.
- O Tratamento Tributário da Contraprestação Contingente
A legislação tributária brasileira, especialmente o artigo 20 do Decreto-lei nº 1.598/1977, determina que o custo de aquisição de participação societária deve ser determinado pelo valor efetivamente pago ou a pagar. Ou seja, para fins tributários, a contraprestação contingente só deve ser considerada quando o sacrifício econômico for efetivamente realizado. O artigo 20 deixa claro que, até que o pagamento da contraprestação contingente seja realizado, ela não deve ser considerada na apuração do IR e da CSLL. Isso está em conformidade com o princípio da realização da receita e despesa, essencial para o regime de lucro real.
A Instrução Normativa RFB nº 1.700/2017, em seu artigo 196, confirma essa premissa ao afirmar que a contraprestação contingente deve ser considerada no custo de aquisição apenas quando as condições para o pagamento forem atendidas. Esse ponto de diferenciação é fundamental para entender a natureza do impacto tributário dessas cláusulas. Embora a contraprestação contingente seja reconhecida contabilmente desde a data da aquisição, ela só gera efeitos tributários quando a condição necessária para o pagamento for atingida.
Portanto, o valor da contraprestação contingente, que é calculado no momento da aquisição com base no valor justo e registrado contabilmente, não afetará a apuração de tributos até que a condição que aciona o pagamento seja efetivada. O reconhecimento tributário da contraprestação contingente está diretamente ligado à materialização do evento futuro.
Silva e Przepiorka Vieira aprofundam tal argumento ao afirmar que, uma vez implementada a condição suspensiva, o montante adicional deve ser integrado positivamente ao goodwill, sendo sua amortização tributária regida pelo art. 433 do RIR/2018, e não dedutível de forma imediata. Tal conclusão está em perfeita harmonia com Miguita, que igualmente defende a postergação dos efeitos tributários até o momento da efetiva realização do pagamento.
Ambos os estudiosos, portanto, rechaçam a dedutibilidade antecipada, sustentando que o reconhecimento fiscal precoce violaria os princípios da segurança jurídica e da capacidade contributiva.
- Exemplificação Prática
Consideremos uma situação prática em que uma empresa adquirente concorda em pagar R$ 10 milhões pela aquisição de 100% das ações de uma empresa alvo. Além disso, estabelece-se uma cláusula de earn-out que prevê o pagamento adicional de R$ 2 milhões caso a empresa adquirida atinja um EBITDA de R$ 5 milhões nos próximos dois anos. Na data da aquisição, o valor justo da contraprestação contingente é estimado em R$ 1,5 milhão.
Tratamento Contábil: O valor de R$ 1,5 milhão será reconhecido como parte da contraprestação transferida e registrado no balanço patrimonial da empresa adquirente, aumentando o custo de aquisição da participação societária.
Tratamento Tributário: Para fins de apuração do lucro real e da CSLL, o valor de R$ 1,5 milhão será considerado no custo de aquisição. No entanto, o impacto tributário só será reconhecido quando a condição for atendida (atingimento do EBITDA de R$ 5 milhões) e o pagamento efetivado. Portanto, até que o evento acionador da contraprestação contingente aconteça, não haverá efeito tributário.
Conclusão
A contraprestação contingente, quando incluída em uma transação de aquisição de participação societária, exige uma análise cuidadosa tanto do ponto de vista contábil quanto tributário. O reconhecimento contábil da contraprestação contingente deve ser imediato, com base no valor justo na data da aquisição. No entanto, seu impacto tributário está condicionado à efetivação do pagamento, ou seja, à implementação das condições acordadas no contrato, sempre respeitando o princípio da realização da renda e a coerência sistêmica entre contabilidade e tributação.
Essa sistemática garante a observância do princípio da capacidade contributiva, evitando distorções na apuração do lucro real e assegurando neutralidade fiscal entre as políticas contábeis e os efeitos tributários. Em última análise, o earn-out é essencialmente, um ajuste de preço vinculado ao desempenho econômico da operação, e não como despesa imediata. Essa leitura harmoniza os planos normativo, contábil e fiscal, consolidando um tratamento juridicamente seguro e tecnicamente consistente das contraprestações contingentes no contexto das combinações de negócios.
As contribuições de estudiosos como Diego Aubin Miguita, Fabio Pereira da Silva e Michell Przepiorka ajudam a esclarecer as nuances entre o tratamento contábil e tributário, destacando as diferenças essenciais que devem ser observadas pelos profissionais da área para garantir o correto cumprimento das obrigações fiscais e evitar contingências tributárias.
Referências
- BRASIL. Decreto-lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977. Dispõe sobre a tributação das pessoas jurídicas e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 dez. 1977.
- COMITÊ DE PRONUNCIAMENTOS CONTÁBEIS. CPC 15 (R1) – Combinação de Negócios. São Paulo: CPC, 2014.
- INSTRUÇÃO NORMATIVA RFB nº 1.700, de 14 de março de 2017. Dispõe sobre a apuração do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 mar. 2017.
- SANTOS, Ramon Tomazela. As contraprestações contingentes nas combinações de negócios. Revista de Direito Contábil Fiscal, São Paulo, v. 4, n. 8, p. 175-192, jul./dez. 2022.
- PAULA, José Arnaldo Godoy Costa de. O Earn Out na Compra de Participações Societárias e seus Efeitos Tributários sobre o Custo de Aquisição de Investimentos. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 43, p. 222-251, 2º semestre 2019.
- MIGUITA, Diego Aubin. A Disciplina Tributária da Contraprestação Contingente na Aquisição de Participação Societária. São Paulo: Editora Jurídica, 2023.
- BRASIL. Regulamento do Imposto de Renda (RIR) – Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018.
- SILVA, Fabio Pereira da; PRZEPIORKA VIEIRA, Michell. Aspectos Fiscais e Contábeis da Cláusula de Earn-Out. Revista de Direito Contábil Fiscal, São Paulo, v. 6, n. 12, p. 219-242, jul./dez. 2024

